Me permiti um pequeno passeio para observar o quanto Brasília havia parado para lidar com essa pandemia global.
Descobri lá a verdade do momento: uma capital cheia de contrastes, que representa bem a realidade de seu país.
Ao final do dia, notícias de algum lugar fizeram com que eu me arrependesse de ter corrido o risco de sair.
São sete da manhã. Espero não ver ninguém e atravessar uma cidade fantasma. Com algumas pedaladas, chego ao “Eixão”, o principal eixo que atravessa toda a cidade e que em tempos normais é reservado aos pedestres e ciclistas aos domingos. Mas já lá, encontro carros.
Ainda é a estação das chuvas e tudo é muito verde. Fico maravilhado com os postos de gasolina, muito numerosos aqui, cercados por uma vegetação abundante.
Contraste perfeito entre selva natural e selva de concreto e asfalto.
Estou indo para a rodoviária, provavelmente o lugar de minha preferência aqui, porque é o único lugar onde há uma mistura real de pessoas. Efervescência humana que eu aprecio muito, porque é essa diversidade, essa riqueza cultural que me move. Eu chego e percebo que os ônibus estão funcionando. Eles andam rápido e fazem barulho.
Apesar de tudo, a atmosfera é calma. As pessoas distantes e silenciosas. Bem disciplinados, eles fazem fila para pegar os ônibus. A equipe de limpeza está disponível para desinfetar todas as áreas de contato nos ônibus.
Tem esses vendedores ambulantes, que representam grande parte do Brasil. Trabalhadores não autorizados e não declarados que vivem na pobreza.
E há quem não tenha casa. Aqueles que não têm onde se confinar. Eles são muito numerosos também.
Vou até a estação de metrô, onde muitos dormem, alguns em péssimas condições.
Um segurança me pergunta para onde estou indo, digo a ele que estou passeando.
Então ele me diz: “Este é o pior lugar de Brasília”.
Com certeza, ele não tem o mesmo ponto de vista que eu.
Logo depois, notei um personagem particularmente intrigante.
Ele está carregando uma sacola usando uma vara de madeira muito grande.
Eu me aproximo discretamente para capturar uma imagem interessante.
De lá, alguém grita para chamar sua atenção para mim.
Ele se vira, olha para mim muito agressivamente.
Sem me preocupar, chego mais perto.
Ele expressa sua raiva em palavras extremas.
Eu tento acalmá-lo e ele tenta me bater com a vara.
Eu me afasto e o perdoo porque entendo um pouco o contexto em que os brasileiros vivem.
Por mais que este país tenha as pessoas mais calorosas, há um culto de ódio e terror aqui, que descende da muito difícil história deste país.
Colonialismo e escravidão que ainda são sentidos. Percebe-se que até os eventos mais recentes são banalizados através da manipulação e da corrupção.
Um povo com uma das maiores desigualdades do mundo e o mais dividido que existe.
Então eu notei pessoas fazendo barulho.
Eles choram e choram. Eles parecem estar orando.
O culto à religião também está muito presente aqui.
Outra fonte de corrupção, divisão e manipulação
Meu caminho me leva ao setor bancário.
Meus olhos estão perdidos no céu muito azul, famoso de Brasília, os reflexos da luz nesses grandes edifícios e os efeitos de espelho que as poças de chuva fizeram anteriormente.
Um homem anda de skate – longboard.
Eu digo “É um ótimo dia para andar!”
Ele para e passamos mais de 2 horas conversando, sem ver o tempo passar.
Certamente ele precisava falar tanto quanto eu precisava.
Ricardo, 50 anos, de São Paulo.
Faz tudo, com muitas experiências de vida. Apaixonado por esportes radicais.
Após um acidente, veio a Brasília para resolver uma situação administrativa aqui.
Ele não tem dinheiro suficiente para alugar um quarto e acaba na rua.
Ele vai buscar comida no Setor Comercial Sul, onde muitas instituições de caridade vêm para dar apoio.
Na maioria das vezes, as associações religiosas fazem um trabalho incrível.
Este lugar tem a maior concentração de pessoas sem-teto, em grande parte viciadas em crack.
Uma das piores drogas que está causando estragos.
Um povo inteiro de vítimas, de uma sociedade que as marginalizou.
Quem não aceita que os humanos tenham limites.
Perdemos o rumo. Em um mundo com tantas demandas, nos refugiamos no álcool.
Então esse é o abismo que nos cerca.
Evoluímos em um mundo de individualismo, ego e competição, em que perdemos as raízes do que nos torna humanos e esquecemos que tudo está ligado.
Humanos, animais e natureza. E que, para o nosso bem, dependemos do bem do outro. De todo esse equilíbrio.
Hoje, a situação nos lembra o quão frágil é esse sistema, que não nos antecipa nada.
Essa pandemia será seguida por uma crise econômica global sem precedentes e um colapso climático.
E é, como sempre, o mais fraco quem sofrerá mais.
Mas a diferença é que desta vez, todos sofreremos.
E nós ocidentais, nossa geração, nunca experimentou esse tipo de problema: uma pandemia, que coloca em dúvida a capacidade de sobrevivência, que nos impõe o medo de contrair uma doença mortal e nos limita o acesso às nossas necessidades básicas.
Achamos difícil nos identificar com o que é “diferente” de nós, com que está longe.
Nosso umbigo, a ponta do nariz.
Esse vírus prova que não somos tão diferentes nem estamos tão distantes.
É difícil se identificar com o que é “diferente” de nós, longe de nós.
Nosso umbigo, a ponta do nariz.
Esse vírus nos mostra que não somos tão diferentes e nem tão distantes.
Mais tarde naquele dia, vejo um vídeo de Camille (@graine_de_possible), uma ativista ambiental.
Seu pai, um homem forte, corredor de longa distância, está atualmente confinado ao hospital, em gotejamento com assistência respiratória porque contraiu o vírus corona.
Mais tarde, vejo um vídeo de Camille (@graine_de_possible), uma ativista ambiental.
Seu pai, um homem forte e corredor de longa distância, está atualmente internado com assistência respiratória pois contraiu o vírus corona.
Poderia ser meu pai, poderia ser alguém próximo a mim, poderia ser eu.
Finalmente, sou tocado e compreendo a seriedade da coisa.
Penso em todos aqueles que sofrem da doença direta ou indiretamente.
Pessoas que já estavam em estado crítico e ainda mais hoje.
Aqueles que estão morrendo de fome, aqueles que estão amontoados nos campos de refugiados.
A morte, que sempre tentamos controlar, que fazemos de tudo para que fique longe de nossa consciência, chega perto de nós e teremos que nos acostumar.
Podemos agradecer o efeito positivo sobre a natureza, resultante da cessação de nossas atividades.
Podemos dizer que finalmente as pessoas perceberão a importância da resiliência e que todos nos reuniremos para viver melhor juntos e moldar as sociedades de amanhã.
Ou, que pelo contrário, devido à miséria, nós vamos pisar uns nos outros.
Deixar o nosso futuro para os atuais governos de muitos países do mundo, os quais certamente irão impor medidas ultra-liberais, anti-democráticas e anti-sociais, abandonando qualquer ambição ecológica, em nome de revitalizar a economia com grandes reforços de combustíveis fósseis e apoiar multinacionais
Brasília celebrará seu 60º aniversário no final deste mês.
Uma grande festa está planejada.
Para quem tem um teto sobre a cabeça, essa comemoração será realizada nos sofás, no pico do vírus.
Para outros, mesmo que haja muita solidariedade entre cidadãos, associações e governo, ainda não há medida para abrigar os sem-teto.
Fiz a escolha de ficar aqui porque amo esta cidade, seu povo e tenho muita esperança de que transformaremos este lugar.
Talvez eu me arrependa.
No momento, todos estamos diante de um futuro muito incerto.
Mais do que nunca, teremos que mostrar força mental e inteligência real.
Cuide-se, de si e de seus entes queridos e, durante esse período, vamos pensar juntos sobre como vamos nos organizar.
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